terça-feira, 10 de novembro de 2009

A MÁ-FÉ E A LIBERDADE NA PSICANÁLISE EXISTENCIAL DE SARTRE.

Em seu livro O Ser e o Nada, J.P. Sartre contesta claramente o conceito freudiano de inconsciente. Ele rejeita a idéia de inconsciente por retirar do indivíduo a responsabilidade de suas escolhas, tudo está no consciente e tudo, como veremos, é escolha de cada indivíduo, não há determinismo ou acaso, só há a radicalidade da liberdade. Tudo é de inteira responsabilidade de cada ser, e não da ordem de uma instância desconhecida na mente chamada “inconsciente”. Neste caso, ele se apóia nas noções de má-fé e liberdade, e funda uma psicanálise existencial. Como a má-fé e a liberdade podem negar o inconsciente? Qual a base de sustentação teórica a partir da qual Sartre com as idéias de má-fé e liberdade pode negar o inconsciente?

O estatuto ontológico da psicanálise existencial é determinado pela
conceituação sartreana da consciência, da liberdade, e da negação da existência do inconsciente. A má-fé é a alternativa teórica criada por Sartre para criticar o inconsciente freudiano, permitindo salvar a liberdade humana e a conseqüente responsabilidade que ela traz em si, que seria seriamente comprometida se o homem fosse determinado pelo inconsciente.
Para Sartre o que tem importância não é a causa, mas o sentido que cada escolha vai acarretar no projeto pessoal, o que cada indivíduo escolhe ser. Ele sustenta que tudo que há na consciência é necessariamente transparente para si mesma. Sem seu objeto, a consciência é um nada, um não-ser, pois que somente existe na relação de si mesma com o "ser em si". Ela procura o "ser em si" para fundar a si mesma, o que significa que ela destrói o "ser em si", transformando-o no seu próprio nada. "O ser e o nada", título de seu livro, refere-se a esses dois tipos de ser: o "ser em si" (fenômeno) e o "ser para si" (consciência).
Todos os aspectos da vida mental são intencionais, conscientemente escolhidos e de responsabilidade de cada ser, o que é incompatível com o determinismo psíquico postulado por Freud. Ao invés de falar de inconsciente, ele fala do “projeto original” de cada Ser.






“A psicanálise empírica procura determinar o complexo, cuja própria designação indica a polivalência de todas as significações conexas. A psicanálise existencial trata de determinar a escolha original.” 1






A “escolha original” não concerne às relações com objetos em particulares no mundo, mas sim a meu ser-no-mundo em totalidade. Não há uma essência acabada de mim mesmo que orienta a priori meu comportamento. Sendo cada pessoa essencialmente uma unidade, e não um complexo de hábitos e desejos desordenados e sem relação entre si, tem que haver para cada indivíduo a “escolha original”, o qual confere significado e validade ao seu comportamento. Para Sartre, cada momento requer a sua escolha, é o que escolhemos a cada momento que determina a existência individual, e, não o passado ou conteúdos inconscientes que não temos acesso. Sartre diz:






“O princípio dessa psicanálise consiste na assertiva de que o homem é uma totalidade e não uma coleção; em conseqüência, ele se exprime inteiro na mais insignificante e mais superficial das condutas – em outras palavras: não há um só gesto, um só tique, um único gesto humano que não seja revelador.” 2






Segundo ele, quando Freud coloca a questão do inconsciente, ele está negando radicalmente a liberdade de livre escolha do homem, ele tira a responsabilidade do homem para colocá-la em um terreno desconhecido do inconsciente, onde o homem não tem livre acesso. Nesse sentido, a Psicanálise empírica não dá conta da questão da má-fé, posto que má-fé é consciência da consciência, é esse movimento entre transcendência e facticidade deixando de ser para-si (consciência) para transformar-se em em-si (coisa). Mas como se dá esse movimento?
A Má-Fé nega que a existência precede e condiciona a essência, transformando o para-si, no em-si. O para-si sendo um vazio constitui-se como um nada à procura do ser, nessa procura perde a característica de ser livre tornando-se já pré-determinado. No “Ser e o Nada” nosso filósofo aprofunda a reflexão sobre a consciência humana como um Nada em oposição ao Ser. Somos inteiramente responsáveis por nossos atos. Se toda ação é, por princípio intencional, A má-fé é mentir para si mesmo, ou seja, enganador e enganado numa única consciência, fingir é estar de má-fé. Ela tem um lugar de destaque na elaboração filosófica sartreana, como um dos argumentos que nega o inconsciente, visto que a má-fé junto com a censura e a liberdade tratam de afirmar a importância da consciência no projeto original de cada ser. A tentativa de fugir da angústia fingindo que não somos livres e nos auto-iludindo de que nossas atitudes e ações são determinadas pelas circunstâncias externas é uma atitude de má-fé.
O existencialismo sartriano traduz na angústia e no desespero, a dramaticidade de uma civilização em profunda crise, que perdeu o sentido da transcendência e abismou-se na gratuidade de sua própria finitude.
A psicanálise empírica fracassa na compreensão da má-fé, segundo Sartre, pelo fenômeno da resistência e da censura. No andamento de uma análise psicanalítica freudiana, é freqüente ocorrer por parte do analisando uma resistência muito forte ao passo que o psicanalista se aproxima do núcleo do problema psíquico, às vezes até desviando a análise de seu curso ou interrompendo-a.
A teoria freudiana postula uma instância intermediária entre consciente e inconsciente: a censura. E Sartre questiona a existência do inconsciente perguntando: como o analisando pode oferecer resistência à análise psicanalítica quando se aproxima o núcleo de seus problemas psíquicos e da causa das suas neuroses, se seria segundo Freud, inconsciente?
É pela censura que o analisando se dá conta daquilo que disfarça por detrás de todas as manifestações de suas neuroses. É a censura que distingue o que será reprimido e o que pode ficar consciente, para isso ela tem que saber o que deve ser reprimido, em algum nível estou consciente e escolho o que pode ou não vir à tona na minha consciência, mesmo que eu não admita para mim mesmo, estou consciente e escolhendo, por isso, o inconsciente não serve de álibi para o comportamento do indivíduo, portanto, o inconsciente não é verdadeiramente inconsciente, segundo Sartre.
No entender de Sartre, estamos "condenados à liberdade", isto significa que não se pode encontrar para a minha liberdade outros limites além da própria liberdade. Não há nenhum Deus e portanto não há qualquer plano divino que determine o que deve acontecer, não há nenhum determinismo. O homem é livre. Para Sartre toda ação é intencional, sendo a consciência pura liberdade. Nada o força a fazer o que faz. O homem não pode desculpar sua ação dizendo que está forçado por circunstâncias externas ou movido pela paixão que o força a fazer o que faz. Resta como o único valor para o existencialismo ateu a liberdade.
Aos olhos de Sartre, quando o homem nega a liberdade, está tendo uma atitude covarde, ou seja, é uma forma de fugir da angústia da escolha, é mais fácil iludir-se com a segurança de uma essência acabada. Exatamente por ser livre e consciente, o homem tem o poder e a responsabilidade de construir a sua existência e essência, e, por não ter uma essência pronta, uma vida pré-definida, com tudo harmoniosamente bem elaborado, já que a existência precede e condiciona a essência, em Sartre, o homem tem medo de optar, e, por medo dessa possibilidade, ele a renega.



“A liberdade é fundamento de todas as essências, posto que o homem desvela as essências intramundanas ao transcender o mundo rumo às possibilidades próprias.” 3




Sartre sustenta que a estrutura ontológica do projeto fundamental deve ser atingida através de uma Psicanálise Existencial, diferente da teoria de Freud sobretudo porque a sua justificação última consiste em reconhecer a existência, não de uma força instintiva que atua mecanicamente, mas sim de uma escolha livre. A psicanálise existencial deve interrogar a consciência na sua manifestação originária.






“A psicanálise existencial esboçada por Sartre pretende, antes de mais nada, dar um novo fundamento à especificidade dos fenômenos psíquicos e recupera a consciência como livre escolha e livre projeção. Rejeita a pretensão de considerar as pulsões e os complexos como outros tantos em-si [mundo] existentes em números finito dentre os quais se poderiam indicar de um modo universal e necessário os mais importantes [a sexualidade, o poder, a morte, etc.]”4






Para a Psicanálise existencial o homem é desejo de ser. Mas, qual ser? Do ser-em-si, do ser objetivo de fato, a consciência busca um ideal de pura consciência de si mesma, o fundamento do ser-em-si. Pois o ser-para-si é o ser da consciência, um puro nada. O para-si é a liberdade, a autonomia de escolha, e Sartre leva essa autonomia às últimas conseqüências.
A crítica sartreana à psicanálise empírica é certamente uma crítica situada e datada. Situa-se no contexto da recepção tardia da psicanálise no mundo cultural francês, marcado naquele período pela Fenomenologia, que vai mostrar a importância da consciência, retirando qualquer via de acesso inconsciente dos nossos atos, e uma forte resistência à teorização psicanalítica (metapsicologia). A problemática, no entanto, subjacente a essas críticas continua de uma surpreendente atualidade: o confronto e conflito entre a liberdade humana e os vários ‘determinismos’ com os quais se defronta o inconsciente, a consciência e os seus ‘descentramentos’ operados pela psicanálise. Sartre dentro do contexto histórico de sua época está ligado diretamente ao marxismo, à Fenomenologia a ao Existencialismo, e é por esse caminho filosófico que ele lança as bases teóricas da sua psicanálise existencial.



1- Sartre,Jean-Paul, O Ser e o Nada – Ensaio de uma Ontologia Fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão, - Petrópolis, Rj : Vozes, 1997. p. 697.


2- Op.cit., p. 696.


3- Op.cit., p. 542.


4- Princípios – Revista de Filosofia. Vol.10 n.13-14 jan./dez. 2003. Sartre e a Psicanálise Existencial. Cléa Góis. P.210.




Janaina Ismenia de Melo.

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