terça-feira, 29 de setembro de 2009

ANATOMIA DA SOLIDÃO!!!


Almoçou apressadamente, pois tinha pouco tempo para limpar o anatômico antes de iniciar a aula da turma vespertina, tinha que deixar tudo limpo e organizado para os alunos e professores. Comeu sem achar gosto na sua comida insossa, um arroz empapado com feijão branco e um pedaço de pescoço de frango, farinha e batata, tudo frio e sem sal, como sua vida, pensou ele. Engoliu e pegou seu arsenal de trabalho para cumprir com sua obrigação. Limpou as bancadas, limpou o chão, enquanto fazia seu trabalho, observava os alunos irem chegando e se espalhando pelo laboratório, ali, ele era invisível, parecia que ninguém o enxergava, ninguém o via, ninguém lhe cumprimentava, sentia-se muito incomodado com essa invisibilidade social. Mas era querer demais que alunos de medicina, fisioterapia, psicologia, odontologia, pessoas que na maioria são a elite da sociedade, olhassem para um simples ASG, preto e pobre. Ali ele sentia na pele o preconceito social, o poder do dinheiro, a arrogância das pessoas que possuíam um nível social elevado, ou nem tanto assim, mas que estavam ali para serem profissionais liberais e lutarem no acirrado mercado liberal. Ficava olhando discretamente todos aqueles alunos e professores e lembrava-se do seu sonho de ser médico. Como queria poder ajudar as pessoas, tratar dos doentes, ajudar aos mais carentes. Como lamentava ser tão pobre e não ter conseguido estudar. Acostumara-se a sua pobreza e a sua solidão. Não tinha amigos, tinha poucos conhecidos e tinha um rolo muito enrolado mesmo, que só se viam muito raramente. Reginaldo se acostumara a conversar com os cadáveres, fazia deles seus confidentes. Logo que foi designado para ficar trabalhando no anatômico, morreu de medo, pois sempre tivera horror a cadáveres, mas com o passar do tempo foi se acostumando, foi perdendo o medo, e quando se deu conta já conversava com eles, contava suas desventuras, suas ilusões, suas tristezas. Tinha a impressão que assim, diminuía sua solidão. Mera ilusão. Tem algo mais solitário que conversar com cadáver?
Reginaldo vivia enamorado de uma estudante de fisioterapia, que passava muito tempo no laboratório estudando. Uma morena linda, de cabelos cacheados, olhos cor de mel e cintura de pilão. Ficava de longe admirando sua beleza, enquanto ela se debruçava sobre as peças, sem desconfiar que fosse admirada de longe. Mas de tanto olhá-la, ela começou a perceber. Quase sempre que estava estudando no laboratório, percebia Reginaldo rondando por perto, limpando o que era possível que estivesse perto dela, e ela ficou incomodada com aquilo, pois era ambiciosa demais para se interessar por um homem pobre e sem estudo.
Reginaldo acordava quase todos os dias já quase meio-dia, tomava banho e pegava o ônibus para ir trabalhar. Passava tarde e noite na Universidade, limpando, organizando, e principalmente mantendo o anatômico sempre em ordem. Depois de chegar em casa já tarde da noite, num quarto alugado com um banheiro, uma cama, uma mesa, vários livros espalhados, um fogareiro de duas bocas, tudo muito precário, comia alguma gororoba que preparava e fazia o que mais gostava, deitava na cama e lia até de madrugada, pois era apaixonado por literatura. Ironicamente, talvez tivesse mais leitura que a maioria daqueles estudantes ricos e arrogantes, que eram superficiais e incultos. Um ranço de raiva sempre amargurava seu coração. Já tinha lido os grandes clássicos, adorava Machado de Assis, Clarisse Lispector, Fernando Pessoa, e tantos outros. Um dia tomou coragem e escreveu um poema de Fernando Pessoa e timidamente fingindo que limpava a bancada onde Aline estudava, entregou o bilhete a ela e rapidamente saiu com o coração aos pulos. Foi para um banco fora do laboratório, onde Andréa estava sentada lendo distraidamente um livro de Gabriel Garcia Marquez. Sentou-se tentando acalmar as emoções, nem percebeu Andréa direito. Enquanto respirava, viu Aline chegar e lhe jogar o bilhete na cara e dizer para nunca mais tomar liberdade desse jeito, senão daria um jeito dele ser demitido, que ele se colocasse no seu lugar de faxineiro e nunca mais lhe dirigisse nem o olhar. Virou de costas e saiu, enquanto ele ficava ali, mortificado, humilhado e envergonhado, por aquela outra moça que nem conhecia ter presenciado tamanha humilhação. Andréa saiu e voltou com um copo de água para ele.
“Toma Reginaldo, não fica assim não. Eu sei que é doloroso sofrer de amor.”
“Obrigado. Como você sabe meu nome?”
“Eu sempre estudo no laboratório, e já ouvi os monitores lhe chamando. Eu já tinha percebido seus olhares para Aline.”
“Desculpe você ter presenciado esta cena, não esperava que acontecesse. Eu só escrevi um poema de Fernando Pessoa para ela.”
“Talvez ela nem saiba quem é Fernando Pessoa. Eu vou indo, fica bem.”
“Me diz seu nome.”
“É Andréa.”
“Obrigado Andréa”.
Quando ela se levantou para ir, o livro caiu de sua mão, ele pegou para devolvê-lo, mas antes leu o título. Eu já li este livro, é maravilhoso. Obrigado pela atenção.
“Eu estou gostando. De nada. Tchau.”
Reginaldo estava arrasado com tamanha rejeição. Claro que não esperava que ela caísse em seus braços, mas, também não pensava que teria uma reação tão agressiva. No fim da noite, enquanto limpava o anatômico, chorava de tristeza, estava sozinho e aproveitou para contar para o Zé, seu “amigo” defunto a desventura do dia, sentado num banco ao lado de Zé, contava suas desilusões e chorava de dor. Estava arrasado, chegou em casa e ficou horas rolando na cama, mal conseguiu dormir.
Dois meses já haviam se passado daquela tarde do bilhete, e nesse tempo ele observou que Andréa sempre estava no anatômico estudando, sempre estava com um livro diferente, viu que ela gostava de ler, e ela sempre o cumprimentara, o que o deixava muito feliz. Sabia que ela estudava com Aline, mas percebeu que não havia proximidade entre elas, e Nunca mais se aproximou de Aline, pois não poderia perder aquele emprego de jeito nenhum, senão morreria de fome. Num sábado à tarde, Reginaldo resolver sair um pouco de casa e foi para o shopping, para o lugar que mais gostava de ir, para a livraria, onde fiava horas vendo os livros, folheando, lendo, perdia a noção do tempo. Às vezes aos sábados pela manhã percorria os sebos da cidade para comprar ou trocar livros. Chegou à livraria e escolheu um livro e sentou-se numa poltrona, estava entretido na leitura quando ouviu seu nome. Olhou e viu Andréa à sua frente. Cumprimentaram-se e ela chamou para tomarem café, ele agradeceu, mas disse que preferia ficar lendo, não tinha dinheiro para o café.
“Eu o estou convidando. É por minha conta.”
Tomaram café e conversaram mais de duas horas. Enquanto voltava para casa no ônibus, pensava em como seria bom se pudessem ser amigos, mas não tinha ilusões, a diferença social era abismal. Na semana seguinte Andréa entrou no anatômico com uma sacola de livros, procurou Reginaldo e não o encontrou, perguntou para o monitor que ela conhecia, ele disse que ele estava no horário de intervalo, devia ter ido lanchar. Ela foi até a lanchonete que ficava nos fundos da universidade, e o viu tomando um suco com salgado aproximou-se e pediu um salgado e um suco.
“Oi Andréa, o que você faz aqui?”
“Oi Reginaldo, vim ver se você estava aqui, pois fui ao laboratório e não o vi, achei que estaria aqui. Trouxe alguns livros de presente para você, já li todos, resolvi lhe dar, se você quiser é claro.”
“Claro que quero. Obrigado. Mas não pega bem pra você ser vista aqui, muito menos conversando comigo. Não quero lhe prejudicar.”
“Relaxa Reginaldo, você é muito mais legal e culto que os mauricinhos da minha turma. E além do mais, eu sou livre, sou eu que escolho minhas amizades, e eu gosto de conversar com você, acho você legal. Não é pelo fato de você não estar na mesma condição social que a maioria que freqüenta essa universidade, faça de você uma pessoa que mereça ser ignorada, não por mim, meus valores são outros.”
“Poxa Andréa, eu fico até emocionado. Obrigada por não me ignorar e por não ter medo de se aproximar de mim, às vezes eu acho que as pessoas têm medo de mim, parece até que tenho uma doença contagiosa.”
“Infelizmente a gente vive numa sociedade capitalista, preconceituosa e superficial, onde o valor das pessoas passou a ser o que elas têm e não o que elas são de fato. Mas eu abomino essa superficialidade e este preconceito.” Vamos lá, quero lhe mostrar os livros.
Passaram o resto do semestre cultivando cada vez mais a amizade entre eles. Além de incentivá-lo a continuar os estudos e fazer supletivo pra terminar o segundo grau e tentar o vestibular, ela dava-lhe livros e iam muitas vezes a sebos e a livrarias. Reginaldo sempre “contava” pro Zé, seu “amigo” cadáver, suas conversas com Andréa, suas angústias, pois mesmo com a amizade dela, sua solidão ainda era gigantesca, continuava muitas vezes no fim do expediente, já tarde, sentado num banco conversando com o Zé. Chegou o fim do semestre e Andréa terminou o curso, convidou Reginaldo para sua formatura, mas ele disse que não poderia ir, pois ela seria linchada pela turma, não seria prudente. Mas eles poderiam comemorar num sarau, eles poderiam jantar em algum lugar mais reservado e ler poesias e tomar vinho e dar boas risadas.
Alguns dias depois ela o levou para seu apartamento, tinha preparado um jantar para eles, comprado vinho, separado livros de poesias e preparado tudo para ser uma comemoração maravilhosa, pois em breve estaria fora do país, ficaria quatro anos fora fazendo doutorado, queria se despedir de seu amigo mais verdadeiro.
“Seus pais não vão se incomodar com minha presença?”
“Eu moro só, não se preocupe. Meus pais moram na Espanha. Preparei um jantar bem gostoso, vamos aproveitar e declamar poesias, algumas que gosto muito.”
“Que ótimo. Muito bonito seu apartamento. Quantos livros!!!!”
Depois que leram várias poesias, comentarem sobre vários livros, tomarem várias taças de vinho, foram jantar.
“Você já trabalha na sua área Andréa?”
“Eu tenho uma clínica de fisioterapia, onde têm vários profissionais atuando, eu estou além de administrando, estagiando na área que escolhi. Mas, agora vou passar um tempo fora, estou indo fazer meu doutorado na Espanha. Depois eu volto.”
“Você vai embora?”
“Estou indo passar uns tempos na Espanha, mas eu vou ficar lá e cá, sempre que der, eu venho, pois não quero abandonar a clínica. O que foi? Ficou calado?”
“Estou absorvendo a notícia, você é minha única amiga, e vai embora, fiquei triste.”
Depois de jantarem, tomarem muito vinho, declamarem poesias, conversarem bastante, abriram mais uma garrafa para finalizar a noite, os dois já embriagados, Andréa roubou um beijo de Reginaldo, e queria mais, mas ele foi embora, pois tinha muito medo de permitir acontecer tudo e perder a única boa amizade que tinha. Levantou-se e saiu se desculpando com Andréa.
Na semana seguinte ela estava muito ocupada com as festas de formatura e não se encontraram, só se falaram por telefone. Duas semanas depois ela ligou para ele no meio da tarde dizendo que estava indo para o aeroporto dali a duas horas, que se ele quisesse se despedir ele fosse pra lá. Ele pediu para seu chefe para sair, era uma emergência, depois voltaria. Correu para o ponto de ônibus e chegou ao aeroporto, foi direto para ver se ela estava na fila de embarque. Não a viu, ligou para ela, ela disse que estava a caminho do aeroporto.
“Não podia deixar de vim me despedir, e também de pedir desculpas pelo que aconteceu no jantar. Não queria perder minha única e melhor amiga.”
“Eu que tenho que pedir desculpas, foi eu que tomei a iniciativa. Desculpe-me. Como é que eu pude achar que você ia gostar de uma mulher feia e sem graça como eu.”
“Pára com isso Andréa, como você pode dizer isso? E ainda briga comigo quando eu digo que ninguém vai gostar de um cara preto e pobre como eu. Não sei qual de nós dois está pior, complexo de inferioridade a mil. E além do mais, eu achei que você tivesse namorado você nunca me falou nada a respeito.”
“Porque eu também achei que você tivesse namorada. Existe alguma possibilidade para nós dois?”
“Você está falando sério, está brincando comigo ou eu estou sonhando?”
“Nós dois precisamos mesmo de terapia viu, é claro que estou falando sério, você acha que eu ia brincar com uma coisa séria dessas, e responde logo, porque dependendo da sua resposta eu nem embarco hoje, fico mais uns dias.”
“O que diabos você viu num preto pobre como eu???”
“Isso é um sim ou um não? Ou será que você vai querer namorar uma gordinha sem graça como eu?
Claro que eu quero, eu sempre achei que você era demais pra mim, achava quase impossível você querer alguma coisa além da nossa amizade.
Você é um tonto mesmo, porque você acha que eu me aproximei de você, pelos seus lindos olhos azuis? É claro que já sentia atração por você antes daquele dia do bilhete daquela patricinha, mas ao passo que ia lhe conhecendo melhor e vendo o quanto você é maravilhoso, fui me apaixonando.
Passaram dias juntos no apartamento de Andréa, fizeram mil planos. Ela embarcou para a Espanha depois de terem passado natal e ano novo juntos. Ele matriculou-se no supletivo, começou a estudar espanhol e era o mais novo funcionário da clínica de Andréa, com um salário melhor e condições de vida mais humanas. Sempre se falavam e algumas vezes Ela veio ao Brasil. No final do ano, os dois embarcam para a Espanha. Ela fazendo doutorado e ele fazendo graduação também em fisioterapia. Depois de oito anos entre Brasil-Espanha, retornam de vez para Natal, mergulham no trabalho, tanto na clínica como na Universidade, pois os dois passaram no concurso da universidade federal.
Um belo dia entrou na sala de aula onde se iniciava um curso de pós-graduação, onde era um dos professores mais bem conceituados e que os alunos mais comentavam que queriam conhecer, pois era conhecida sua fama de ótimo profissional e ótimo professor. Na primeira fila estava Aline. Ele não teve dúvidas, depois de dar boa noite pra turma, começou a aula declamando um verso de Fernando Pessoa, o mesmo que havia dado para Aline há doze anos e que ela havia jogado em sua cara.
“Professor, O quê poesia tem a ver com nosso curso?”
“Tudo. Sabe turma, há muitos anos eu era apaixonado por uma estudante de fisioterapia e dei esse poema pra ela de presente escrito num pedaço de papel, e sabe o que ela fez? Jogou o papel na minha cara e disse para eu nunca mais olhar nem nos olhos dela, e sabe por quê? Porque eu era o faxineiro do laboratório de anatomia. Que audácia a minha, imagina, um preto e pobre me declarando para uma patricinha. E por que eu estou falando isso pra vocês? Porque me marcou muito aquela atitude daquela moça, E eu prometi que eu ia vencer na vida e ia ser um professor que onde eu desse aulas, minhas aulas seriam para provocar reflexão, combater o preconceito, a mesquinhez, a falta de solidariedade humana, a ignorância e muitas coisas mais. Então meu caro aluno e toda a turma, minhas aulas não são somente teóricas, são também filosóficas-existenciais, abomino os estudantes e profissionais que só pensam no dinheiro, em se dar bem e esquecem que o seu paciente é um ser humano, que sofre, que ama, que tem uma história, que merece respeito acima de tudo, seja ele rico ou pobre. E eu procuro incentivar em meus alunos e companheiros de trabalho, essa sensibilização. Nós não tratamos só de ossos, músculos, torções, nós tratamos de pessoas que merecem nossa atenção, nossa dedicação, nosso respeito, o nosso melhor enquanto profissionais que se propõe a aliviar a dor e fazer o melhor enquanto fisioterapeutas. Precisamos nos trabalhar sempre para sermos melhores enquanto pessoas, lendo bons livros, ouvindo boas músicas, praticando a caridade, doando nosso saber para pessoas mais pobres, enfim, existem milhões de formas de nos tornarmos melhores como Ser e atuar no mundo para contribuir positivamente. Portanto, a arte, a poesia, a filosofia, a literatura são fundamentais neste processo, e nunca esqueçam do amor, pois ele é fundamental em nossa vida. É maravilhoso amar e ser amado, não pelo que você tem, mas pelo que você é, e foi pelo amor daquela que hoje é minha esposa, que enxergou em mim não o faxineiro somente, mas um ser humano, e não teve medo de se aproximar de um preto pobre e ver além do que eu tinha, que eu não tinha nada materialmente para oferecer, mas tinha muito enquanto ser para compartilhar, e ela, do alto da sua posição social, enfrentou o preconceito e assumiu nosso amor, e me deu a oportunidade de hoje eu estar aqui, um profissional realizado e feliz falando pra vocês, e eu desejo que a vida tenha ensinado àquela jovem que jogou o bilhete na minha cara, que a vida é muito mais que marcas de carro e griffe de roupas, e que a vida tenha sido generosa com ela. Para concluir, nossas aulas sempre terão poesias, arte e reflexão, além de músculos e ossos, e eu espero poder contribuir positivamente para uma boa formação teórica, mas também humana durante nosso percurso juntos.”Ele olhou para Aline, ela estava enterrada na cadeira, com os olhos em lágrimas. Ele viu que tocou o coração dela e da turma, acabou a aula foi para casa feliz da vida e contou para Andréa o acontecido, os dois ficaram felizes com a oportunidade que a vida deu para ele devolver o bilhete para Aline, de forma digna. Se amaram e dormiram abraçados.

Janaina Melo.
(foto tirada da internet).


Um comentário:

  1. Minha amada:

    É incrível como aliou sensibilidade, espírito crítico, esperança e suspense num conto que é um romance em potencial. Uma história que, de fato, instiga a reflexão e enche de contentamento. Sublime.

    Beijo

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