quarta-feira, 8 de junho de 2011

A CONSCIÊNCIA INFELIZ E SEUS DESTINOS

O título desta Comunicação se inspira no de Hegel (1798-1800), O cristianismo e seu destino (Der Geist des Christentums und sein Schicksal) e de Freud (1915), As pulsões e seus destinos (Triebe und Triebschickasale). Mais do que um simples pretexto lingüístico para aproximar os dois pensadores, penso que suas análises da infelicidade da consciência (unglückliche Bewusstein) e do mal-estar (Unbehagen) na cultura, a despeito de divergências fundamentais, nos podem auxiliar na compreensão dos destinos dessa infelicidade e desse mal-estar na nossa cultura contemporânea.
Parte-se da suposição de que cada época histórica apresenta suas manifestações peculiares de um sofrimento, de uma infelicidade, de um mal-estar, de um ‘negativo’ que atravessaria a todos os membros de uma determinada comunidade cultural, a despeito de suas subjetividades singulares. Se isso for verdade, devemos inicialmente identificar os tipos de sofrimento e as respectivas culturas com ele correlacionado de que nos falam Hegel e Freud para em seguida pensarmos as eventuais novas formas de sofrimento presentes em nossa cultura

I. A consciência infeliz em Hegel.

1. Algumas interpretações.

Para quem tem um mínimo de cultura filosófica, falar de infelicidade e mal-estar é relembrar imediatamente a poderosa descrição que Hegel faz da consciência infeliz em A Fenomenologia do Espírito. Uma primeira dificuldade a ser contornada, porém, é responder previamente se a infelicidade da consciência hegeliana é algo que remete a uma realidade psicológica e cultural ou se ela se inscreve apenas na ordem de uma contradição lógica a ser superada.
A resposta a essa questão depende da chave de leitura que for privilegiada. Se a Fenomenologia pode ser percebida consensualmente como uma epopéia da liberdade, permanece a dúvida sobre quem é o herói dessa epopéia: a consciência, o Espírito, o Saber Absoluto?
A despeito das diferentes respostas possíveis, é inquestionável que a consciência é a grande protagonista da aventura e da façanha de arrancar-se do mundo natural e se dar uma história: Segundo a bonita descrição de Labarrière ( 1993, p.22),

 
, “ela sai de si, retorna a si, se precipita, é travada, some, emerge, luta, se exprime, progride, afirma, nega, sofre, morre, crê, sabe, ignora, se divide, se reconhece, nos arrasta numa sarabanda desenfreada, freqüentemente inquieta e de repente apaziguada, se erguendo contra a evidência e cedendo à força das coisas, conhecendo a boa e a má fé, a prisão e o despertar da liberdade, se elevando enfim à sua verdadeira estatura, à atitude forte e modesta deste “saber absoluto” que conhece conceitualmente o mundo sem nada acrescentar-lhe e estabelece uma exigente identidade entre o que é dado e o que é compreendido”


Já para Hyppolite (1946, p.184), mais do que a simples consciência, é a consciência infeliz o tema fundamental da Fenomenologia. Não permanece circunscrita a uma das estações que a consciência natural terá necessariamente de atravessar rumo ao saber verdadeiro sobre si mesma. É algo que perpassa todas as páginas do texto, na medida em que a infelicidade é inerente ao devir da consciência. O homem, de fato, não é percebido como essência estática, mas como itinerário e experiência, como ‘negatividade criadora’ que ultrapassa as leis biológicas da natureza e se torna espírito, um “Eu que é Nós, Nós que é Eu”, em outras palavras, se dá uma história ou, servindo-nos de uma seqüências de lindas metáforas utilizadas por Hegel (1992, p. 125-126), “afasta-se da aparência colorida do aquém sensível e da noite vazia do além supra-sensível para entrar no dia espiritual da presença.”

Ambos os celebrados comentaristas e intérpretes da obra de Hegel concordam que, nas palavras de Labarrière (1993, n. 1, p.237), “a ‘infelicidade’ da consciência não conota qualquer estado psicológico, nem mesmo uma sua depreciação; este termo figurativo tem uma alçada lógica na medida em que caracteriza a consciência na sua dualidade constitutiva, cuja unidade é a razão.” Assim também pensa Hyppolite (1946, p.39), segundo o qual inexiste, na Fenomenologia uma menção explícita a uma determinada época histórica à qual vincular a consciência infeliz. Há apenas uma alusão histórica que se presta para ilustrar o desenvolvimento lógico e necessário da ‘consciência de si’.
Já para Jean Wahl (1951, p.VI), um dos iniciadores da renovação dos estudos hegelianos na França, ao perguntar-se logo na prefácio de seu livro A consciência infeliz na filosofia de Hegel, publicado em 1929, que significava a expressão consciência infeliz, respondia que a consciência contraditória estudada por Hegel na Fenomenologia é, antes de tudo, algo que é ‘essencial à alma de Hegel’. É também uma ‘experiência histórica da humanidade’. Enfim e por último, é a expressão de um desequilíbrio profundo, mesmo que momentâneo, não somente do filósofo e da humanidade, mas do próprio universo, que disso toma consciência através deles. Algo de trágico, portanto, de romântico e de religioso perpassa essas páginas da consciência infeliz: “a separação é dor; a contradição é o mal; os elementos opostos são elementos não satisfeitos”. (Ibidem, p.VI).
Dessas interpretações da consciência infeliz nos interessa especialmente aquela que focaliza a infelicidade como expressão privilegiada de uma determinada época histórica. Dessa maneira, talvez seja possível lançar uma ponte com suas outras manifestações culturais de sofrimento e, de modo particular, com nosso mal-estar contemporâneo. Essa interpretação, sem ser exclusiva, é legítima na medida em que a Fenomenologia do Espírito pode ser lida e entendida na sua relação com os escritos anteriores e não apenas com as obras mais logicizantes do Sistema.

2. A consciência infeliz nos escritos do jovem Hegel

O tema da consciência infeliz já se anuncia nos primeiros trabalhos teológicos de Hegel, onde contrapõe à felicidade do povo grego e à figura de Sócrates, respectivamente, a infelicidade do povo judaico e a figura de Cristo. Será, porém, nos escritos do período de Berna onde se encontra o primeiro esboço da consciência infeliz. Ao descrever a passagem do mundo antigo para o mundo moderno, Hegel descreve o homem grego, cuja essência se encontrava na cidade e nos deuses da cidade; a ruptura com a emergência da subjetividade e a decorrente a infelicidade; o advento do cristianismo como religião que correspondia e explicava esse estado de espírito; a superação do Deus Pai, distante e juiz, pela figura de Cristo, o universal concreto, e desse para o Espírito, quando finalmente e realmente se dará a verdadeira reconciliação do infinito com o finito.
Na Fenomenologia, esta abordagem teológica da infelicidade da consciência é transposta filosoficamente sem perda de sua relevância e centralidade. Pode-se até afirmar que perpassa todas as páginas do texto, na medida em que a infelicidade lhe é inerente e decorrente do seu desenvolvimento. De fato, o tornar-se consciente de si mesmo, tornar-se sujeito, implica experimentar o sofrimento de uma unidade perdida. A infelicidade é o preço que a consciência paga por romper com a vida e pela impossibilidade de fazer coincidir plenamente pela reflexão o mundo orgânico da vida biológica e mundo inorgânico da consciência.
O lugar, porém, onde Hegel analisa mais tematicamente o drama da consciência que luta pela reunificação interior de si mesma é nas páginas da Fenomenologia dedicadas à ‘figura’ da consciência infeliz,

 
3. A ‘figura’ da consciência infeliz na Fenomenologia:

Ela é a última ‘estação’ da ‘consciência de si’ rumo à verdade de sua certeza. Consciência desejante, inicialmente, servil-trabalhadora em seguida, pensante no estoicismo, contraditória no ceticismo, passa por último pela experiência da consciência infeliz.
A infelicidade surge precisamente no momento em que a consciência, contraditória ‘em si’, se torna contraditória também ‘para si’. A infelicidade não decorre apenas dessa tomada de consciência, mas também das dificuldades e fracassos que esperam esta terceira forma da liberdade na sua tentativa de suprassumir as primeiras duas, isso é, o “puro pensar do estoicismo, que faz abstração da singularidade em geral; seja do puro pensar de cepticismo, que é somente inquieto, e de fato é apenas a singularidade, como contradição sem-consciência e movimento sem-descanso” (HEGEL, 1992, p.144).
Para dar um repouso à infinita inquietação da consciência cética, a consciência infeliz colocará inicialmente sua saída no ser Imutável ao qual nada faltaria, sendo ao mesmo tempo ‘em si’ e ‘para si’. Nesse primeiro momento, a consciência revive na intimidade de sua consciência a divisão sofrida e desigual que caracterizou a relação Senhor-Escravo. Somente que agora o Senhor é Deus e o Escravo é o Homem, passando a consciência a identificar-se ora com um, ora com outro, sem poder alcançar o repouso na unidade. Na realidade, ela é já essa unidade, mas não tem consciência disso e opõe Deus (o Imutável, o Universal) e o Homem (o Mutável e o Singular). Ao se identificar com a mutabilidade e a inessencialidade, a consciência está condenada à infelicidade. Sua essência verdadeira foi colocada num Deus transcendente e inacessível. Qualquer tentativa de ascese para se libertar da multiplicidade e inessencialidade das coisas está destinada ao fracasso.
A consciência infeliz, portanto, é ao mesmo tempo essencial e inessencial, o que implica que o mutável não pode abstrair do imutável, ma que também esse não está fora da atenção da mutabilidade, o que abre caminho para a segunda fase do imutável como figurado.
Quando o Imutável se torna Imutável figurado, a consciência passa a procurá-lo na sua figura singular, isso é na figura do Cristo histórico, o universal concreto. Pela encarnação, a união da verdade (Universalidade) e da vida (Singularidade) finalmente se realiza, mas de uma maneira imediata, sem passar pelas mediações necessárias. A consciência cristã se descobre infeliz quanto a judaica, porque o Deus encarnado, que perdeu a vida, está distante no tempo e no espaço tão ou mais distante do que o Deus transcendente que nunca a conheceu. As cruzadas são o símbolo histórico desta busca do Absoluto no aquém e que termina no fracasso de um sepulcro vazio.
A reconciliação singularidade-universalidade, mutabilidade-imutabilidade, finito-infinito, se revelou impossível por esses dois caminhos. Faltava a mediação para que a verdade do homem-Deus se tornasse a verdade para-si da consciência. A reconciliação efetiva é possível e a consciência poderá reconhecer-se como um universal concreto graça à figura do Ministro mediador, termo médio do silogismo dialético, cujos termos extremos são a consciência singular e a consciência universal.
Antes, porém, esta consciência singular será consciência devota, desejante, ativa, gozante, agradecida para finalmente se tornar consciência ascética. Nesta última etapa a consciência singular renuncia à sua vontade (obediência), à posse (pobreza) e ao gozo (castidade), à liberdade exterior e interior, numa palavra, ao próprio eu, à própria subjetividade, até tornar-se um objeto. Não percebe, porém, que com isso a sua singularidade se tornou universal, a totalidade do real. A consciência de si sai objetivamente - mas não subjetivamente - de sua infelicidade e se torna Razão. Exemplo histórico desse momento é a superação da comunidade espiritual da Igreja na Idade Média com a emergência da Modernidade.
Em Hegel, portanto, o tema da infelicidade se articula em torno de figuras religiosas transpostas numa linguagem filosófica: o Imutável, o Imutável figurado, o Ministro mediador, o Espírito. A infelicidade não é propriamente um sintoma cultural, mesmo que seja possível encontrar expressões históricas de suas vicissitudes. Trata-se do sintoma de um dilaceramento interno à própria consciência, cindida, dividida, duplicada entre um ‘em-si’ e um ‘para-si’, entre sua singularidade e sua universalidade, entre o mundo do ser e da vida de um lado e o mundo da consciência do outro, entre a substância e o sujeito. Em outras palavras, a consciência infeliz é uma subjetividade em busca de sua unidade (HYPPOLITE, 1946, p.189). Unidade que não é apenas uma tênue esperança, mas uma certeza, mesmo que inicialmente o avanço da consciência cindida rumo a sua superação é só para nós filósofos que rememoramos, mas não para ela, (HEGEL, 1992, p.141; 142; 146; 151). É inegável, porém, que, ao descrever a fenomenologia da consciência infeliz, Hegel mostra que a reconciliação que se encontra no final do processo no “conceito do espírito que se tornou [um ser] vivo e entrou na [esfera da] existência” (HEGEL, 1992, p.140), já se encontrava de alguma maneira desde o começo. (Ibidem, p.140-141.
Com uma certa liberdade e com outro jogo de linguagem poderíamos afirmar que o homem medieval não se pertencia totalmente, na medida em que sua crença nas próprias potencialidades era neutralizada pela dependência e submissão a um Deus onipotente e pela necessária mediação eclesial. Com o desmoronamento da Idade Média, a Reforma e a posterior proclamação da ‘morte de Deus’, teria a Modernidade se livrado da consciência infeliz?

 
II. O mal-estar da Modernidade

Quem nos pode ajudar a responder a essa pergunta é outro pensador – Freud - que não vem da filosofia, mas que também se colocou o problema da ‘infelicidade’, do mal-estar na cultura, quase cem anos depois da morte de Hegel.
O ‘grande Outro’ da religião, Deus, se tornou o da Cultura ao qual os indivíduos estão de tal modo ‘assujeitados’ a ponto de comprometer sua saúde física e psíquica. O olho de Deus se secularizou, assumindo o nome de superego individual e cultural. O preço que pagamos pelo ‘avanço’ civilizatório responde pelo nome de neurose e sentimento inconsciente de culpa.
Essas são as duas teses básicas defendidas por Freud no famoso texto de 1930 O mal-estar na civilização. O mal estar decorre das proibições da cultura ao incesto, à sexualidade polimorfa e perversa e das restrições excessivas à própria sexualidade genital, de fato mais tolerada do que permitida (FREUD, 1930, p.161-162); e da necessidade da cultura, para que se torne possível e se desenvolva (ibidem, p. 185), de redirecionar contra o próprio indivíduo sua agressividade a qual será paga com um sentimento de culpa inconsciente.
Para descrever a relação conflitiva entre o singular (indivíduo) e o universal (cultura), Freud não recorre a figuras religiosas ou filosóficas, como Hegel, mas míticas: Eros e, Thanatos. O mal-estar é um sintoma cultural que remete à dificuldade de reconciliação da sexualidade e agressividade humana com as exigências da cultura. O ‘deus de prótese’ (FREUD, 1930, p.111) que o homem moderno se tornou graça ao avanço técnico-científico, é um deus infeliz. A felicidade não está inscrita nos planos da criação e o destino do homem está mais próximo da infelicidade, cujas causas devem ser procuradas num mundo sem Providência, numa cultura sem tolerância e na natureza das próprias pulsões sem satisfação plena possível.
O arcabouço teórico que sustenta a explicação do patológico (neurose), do normal (sonho) e da própria cultura (moral, religião, arte) é o famoso complexo de Édipo, onde o amor e o ódio para com as figuras parentais são vivenciados individualmente no nível de uma fantasia inconsciente como reatualização de um Édipo efetivamente consumado no começo da sociedade humana.
Com essa poderosa descrição, Freud pretende dar conta de um mal-estar intransponível que perpassa os indivíduos e todas as culturas. A receita de uma eventual reconciliação do mundo pulsional e da vida com as exigências do mundo da cultura, não se encontra no saber da psicanálise que não pode oferecer consolo algum. Cada um terá que encontrar sua própria salvação para enfrentar a dureza da vida e ninguém pode garantir que Eros leve a melhor sobre Thanatos.
Segundo Marcuse (1970), essa teoria da cultura é um reflexo do momento histórico específico em que foi formulada. A psicanálise freudiana envelheceu porque pensou o indivíduo e seu mal-estar dentro de uma sociedade monogâmica e de capitalismo industrial, quando a socialização do indivíduo se dava dentro do núcleo familiar onde a figura do pai representava o princípio de realidade. Com as mudanças sociais (sociedade de massa) e econômicas (sociedade de consumo), a socialização se dá prevalentemente fora da família. O declínio do papel do pai teria abalado as bases da teoria psicanalítica do superego como herdeiro do complexo de Édipo. “Nos setores mais avançados da atual sociedade, o cidadão já não se sente seriamente perseguido pelas imagens do pai” (ibidem, p.92).
Até psicanalistas (COSTA, 2000, p.7-30; BIRMAN, 1999, p.15-16) reconhecem que esse paradigma edípico já não dá conta teoricamente do quadro de patologias, de nossas formas de sofrimento e de novas modalidades de inscrição da subjetividade no mundo da atualidade. Lacan (1985, p. 11), por sua vez, percebeu que o superego repressor freudiano cedeu lugar a um superego que agora ordena ‘goza’, sem deixar de ser ‘figura obscena e feroz’.
Concluído esse tosco esboço de uma infelicidade que perpassa a Idade Média e a Modernidade na respectiva compreensão de Hegel e Freud, resta tentar responder a pergunta que mais nos interessa: é possível compreender e superar nossa consciência infeliz pós moderna? O que o filósofo e o psicanalista ainda podem nos dizer a respeito?

 
III. A consciência infeliz: da modernidade à contemporaneidade

Sem entrar na discussão da continuidade e/ou descontinuidade entre Modernidade e nossa contemporaneidade, é preciso reconhecer que, no próprio projeto da Modernidade já está presente esta tomada de consciência de que com ela ‘tudo o que sólido derrete-se no ar’ (MARX; ENGELS, 1998, p.14). O que é ‘novo’ na contemporaneidade é que os sólidos que estão sendo derretidos são os laços tradicionais que ainda sustentavam de alguma maneira o indivíduo no seu processo de subjetivação e de socialização: os grandes discursos legitimadores da religião, das ideologias fortes, do sindicado, da família estruturada em torno da figura paterna etc... .(BAUMAN, 1998; 2001).

Na época retratada por Freud, o mal-estar decorre de uma falta de liberdade, de uma excessiva e indevida repressão em nome da segurança. Hoje, essa é sacrificada no altar da liberdade, para não dizer do liberalismo, tornando o homem-deus pós-moderno, como o deus de prótese descrito por Freud, também um deus infeliz. Mas por que e de que sofre o deus pós-moderno?
Especialmente a partir do final da segunda guerra mundial, com significativa acentuação nas últimas décadas, o mundo conheceu macro mudanças político-econômico-culturais que desaguaram no fenômeno complexo da globalização. Ainda estamos totalmente mergulhados dentro dele para uma sua compreensão adequada, todavia um mínimo de distanciamento que possamos conseguir nos permite vê-lo na sua ambivalência, como aquelas figuras ambíguas estudadas pela Gestalt, ora parecendo uma coisa, ora outra, as duas imagens se alterando aleatoriamente sem conseguirmos nos fixar numa dela.
De um lado, proporcionou a produção e circulação de bens materiais e simbólicos sem precedentes. Por outro, gerou também uma sociedade de consumidores e excluídos, de ‘arrivistas e parias’, ‘turistas e vagabundos’ (BAUMAN, 1998).
De um lado reduziu o poder do Estado paternalista e de bem-estar social, forçando os cidadãos a se tornar criativos e empreendedores. Por outro, gerou e disseminou uma insegurança permanente e um sentimento de impotência diante da necessidade de cada um individualmente solucionar problemas que são de natureza essencialmente sociais.
De um lado, com a impressionante expansão das redes de comunicação (rádio, telefone, televisão, internet) tornou de fato nosso mundo uma verdadeira ‘aldeia global’. Por outro nos deixou a sensação que estamos entregue a um autoritarismo nada desinteressado dos caciques globalizados que são os donos dos Meios de Comunicação, muitos deles sucessores dos tradicionais donos dos meios de produção.
De um lado, esses meios de comunicação democratizaram a informação como nunca antes a humanidade tinha vivenciado. Por outro, geraram a cultura do narcisismo (LASCH, 1984) e a sociedade do espetáculo (DEBORD, 1986).
De um lado, o avanço científico, tecnológico e farmacológico parece prometer literalmente o céu (era espacial), a beleza, a juventude prolongada, a felicidade e o prazer ao alcance de uma operação plástica, de um antidepressivo ou de um remédio para disfunção erétil. Por outro, nossos ‘distúrbios de comportamento’ são remetidos totalmente à nossa responsabilidade quando não conseguimos atingir a performans física, profissional, afetiva e sexual esperada e exigida pela sociedade ou pelo parceiro.
De um lado disponibilizou e continua disponibilizando uma multiplicidade continuamente renovada de identificações e de estilos de vida para mediar nosso processo de subjetivação e socialização. Passamos de uma era de grupos de referência mais restritos para uma outra de comparação global. Por outro, somos intimados a nos inventar, criar e recriar, ser si próprios e livres, ‘subjetivar-se’, ‘fazer-se’ sujeito, ‘construir-se’ ‘desconstruir-se’ ‘flexibilizar-se’, ser uma metamorfose ambulante, desnorteados diante de tantos modelos identificatórios que parecem se equivaler e dificultando a escolha.
De um lado, a flexibilização do laço social e afetivo (BAUMAN; MEDEIROS 2004) entre as pessoas aumentou enormemente as possibilidades de escolha, de se construir na diferença e singularidade. Por outro, percebemos como é bem mais fácil e comum perder-se no anonimato das grandes cidades, na massificação, num amor volátil e volúvel.
Não é de estranhar se hoje a consciência infeliz, dilacerada entre demandas contrárias de singularização e de universalização, atende pelo nome de toxicomanias, síndrome do pânico (BIRMAN, 1999, p.178), distúrbios alimentares (bulimia, anorexia).e. especialmente de depressões.
Evidentemente, nem a filosofia, nem a psicanálise tem força suficiente para mudar o curso da história. Com toda probabilidade, tanto o negativo hegeliano quanto o mal-estar freudiano vão continuar dentro dela. Esse dado, porém, não pode ser o álibi de nosso descompromisso ético frente ao sofrimento e à infelicidade humana. Nesse sentido, há uma coincidência entre as duas análises hegeliana e freudiana que não nos parece forçada.
É possível, de fato, considerar a Fenomenologia de Hegel “como a verdadeira tragédia de Édipo, entendido como espírito humano inteiro, com esta diferença talvez de que o desvelamento final - o que Hegel chama ‘saber absoluto’ - permaneça ambíguo e enigmático” (HYPPOLITE, 1971, p.214).
Os ‘indivíduos’ - para Hegel - podem universalizar-se, elevar-se para o mundo de uma história que pode ser não de senhores e escravos e regida pela violência do mais forte, mas de iguais, de intercomunicação de consciências, de liberdades consentidas e reconhecidas reciprocamente, em suma, uma história, que pode e deve ser regida pela reciprocidade do consenso racional.
Quanto a Freud (1930, p.193-194), é verdade que ele não se apresenta como o profeta de um mundo reconciliado, mas no conflito desejo – cultura não se coloca do lado do desejo contra a Lei, nem desta contra aquele. Parece-nos que não é possível reduzir a mensagem do livro O Mal-estar na Civilização a esta expressão: onde havia superego cultural deve advir o ego, o que implica a necessidade de mediar as relações conflitivas do sujeito com a cultura por uma racionalidade. Nesse sentido, tanto o otimismo hegeliano quanto o pessimismo freudiano, ambos na sua lucidez que nada tem de ingênuo, parecem apontar para uma responsabilidade ética: construir um mundo pessoal e comunitário menos sofrido. A razão, a liberdade, a felicidade podem abrir seu caminho na história dos homens mesmo que sofridamente e a despeito da desrazão, da violência e da infelicidade que a perpassam.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

_____. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

_____; MEDEIROS, C.S. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004

BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1999.

DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997

FREUD, Sigmund. (1930) O Mal-Estar na Civilização. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. S. Paulo: Abril Cultural, 1978, p.129-194.

____. (1915) As pulsões e seus destinos. Vol. XIV da ESB.

HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito: Parte I. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 1992.

___. Fenomenologia do Espírito: Parte II. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 1993.

___. Phénoménologie de l’Esprit. (Présentation, traduction et notes par Gwendoline Jarczyk et Pierre-Jean Labarrière). Paris: Gallimard, 1993.

HYPPOLITE, Jean. Genèse et structure de la Phénoménologie de l’Esprit de Hegel. Paris: Aubier-Montaigne, 1946.

___. Phénoménologie de Hegel et psychanalyse. In: Figures de la pensée philosophique. Tome I. Paris: Presses Universitaire de France, 1971, p.213-230.

JARCZYK, Gwendoline e LABARRIÈRE, Pierre-Jean. Présentation, traduction et notes. Dans Phénoménologie de l’Esprit par G.W.F. Hegel. Paris: Gallimard, 1993, p.7-60.

LACAN, Jacques. O Seminário: Livro 20:mais ainda. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985

LASCH, C. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1984

WAHL, Jean. La malheur de la conscience dans la philosophie de Hegel [1929]. Paris: PUF, 1951 (12.a ed.)

* Este texto foi escrito pelo professor Drº Vincenzo Di Matteo,  filósofo do Departamento de Filosofia da UFPE.

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